segunda-feira, 28 de março de 2022

Varanasi

Baba Raju

Varanasi, Banaras, Kashi. Tudo nomes duma cidade milenar que ecoa pelas memórias do tempo e da nossa civilização humana. Hoje é um local onde tanto se podem encontrar homens nus a espalhar bênçãos por entre os crentes ou corpos a ser cremados junto a um rio que tanto significado tem para os hindus, o Ganges. Descendo dos cabelos de Shiva e assim ligando o plano dos deuses com o plano material, este rio assume fundamental importância pois quem nele se banhar ou a ele as suas cinzas/corpos forem lançadas é automaticamente limpo dos seus pecados ou atinge o desapego da vida material, libertando-se do ciclo da reencarnação pois todo o seu karma é limpo. É este o motivo pelo qual milhões de indianos peregrinam a esta cidade desde os tempos mais imemoriais. 

roupa a secar depois de lavada

A cidade de Shiva, o deus da destruição, ou uma bonita metáfora para a necessidade de destruirmos o que há de mau ou antigo nas nossas vidas e assim dar espaço para o novo, para a criatividade e o fluir da vida no que há de vir.

Nesta cidade em que o sol nasce a este sobre uma praia vazia e se põe a oeste sobre a cidade, tudo tem a ver com contrastes e com dualidade: vida/morte; destruição/criação; material/imaterial, e por aí fora. É a cidade onde os shiva lingams, estátuas de deuses, árvores sagradas, o próprio rio são carregados de energia através dos rituais, poojas e aartis, que assim mantêm os seus poderes activos e disponíveis para todos sentirmos. A vibração das nossas células quando nos aproximamos ou entramos nestes locais debaixo da terra ou junto ao rio é algo maravilhosamente mágico e vivo. Os próprios gaths (escadarias que descem para um corpo de água) são locais por eleição para sentir esta energia da cidade. Paradoxalmente junto ao rio, tudo é calmo, tudo flui, dentro e fora de nós. Uma experiência de silêncio e imersão que a cidade possibilita e que nos prende a ela, tal é a maravilha e a viagem interior que realizamos. Tinha de ser assim.


Vestir o sari depois de se banhar no Ganges

Quando nos sentamos num dos dois burning ghats (crematórios) activos, que funcionam 24 horas e onde se queimam os corpos de quem assim faz a passagem, não deixamos de apreciar a beleza sensorial de tudo isto que se desenvolve à nossa frente. Os corpos são limpos e cobertos com uma pasta de madeiras e óleos perfumados  e carregados envoltos em tecidos brancos ou avermelhados (homem ou mulher) sob o mantra “Ram Ram Satahé” (traduzido como através do deus Rama - avatar de Vishnu, o deus preservador na tríade Brahma, Vishnu, Shiva - entras no céu) por parte de quem os carrega. São mergulhados num primeiro banho purificador no rio e depois colocados na pilha funerária. Cobertos por mais madeiras perfumadas, como sândalo, e são cremados num processo que pode levar até 5 horas. Durante todo este processo o filho mais velho com os pêlos do corpo todos rapados e envolto numa túnica branca espera pacientemente que o processo termine. No meio do crematório, com cheiro de madeiras e carne queimadas, vacas comem os restos das flores que cobriam antes o corpo no momento do seu transporte. Alguns cães tentam puxar um osso ou pedaço que fique mais a jeito e prontamente são corridos pelos vigilantes do crematório ou familiares do defunto à paulada. Estes mesmos vigilantes do crematório peneiram as cinzas à procura de dentes ou anéis de ouro, que os familiares sabem que ao serem descobertos não serão a si entregues (aqui está uma das belezas do desapego, o que importa não são as posses ou o corpo em si do defunto, mas sim a fotografia de quem morreu, em casa, num altar em que todos os dias se fará uma pooja para celebrar e facilitar aquela pessoa). Alguém lava a roupa ou se banha mesmo ao lado do sítio onde as cinzas foram colocadas no rio enquanto os familiares observam os corpos a arder e bebem chá de limão ou chai vendido pelos vendedores ambulantes que por ali vão passando. Turistas tiram fotografias do rio, em barcos a remo ou a motor, e o rio flui, como desde sempre. Flui continuamente em direcção ao mar, levando e lavando tudo o que a nossa mente cria ou tenta prender-se a. Esta constância de tudo, desde o rio que flui, até aos rituais e vida ao longo dos séculos, traz-me certa tranquilidade que me relaxa e deixa num estado de transe e desapego. Em que tudo é irrelevante e coerente, pois tudo está no seu caminho e tudo está certo. É uma experiência religiosa, de religar, profunda com a espiritualidade que habita em mim.

Purificações e purificado

Depois, levanto-me e, calmamente, caminho até à casa do Gopal, numa das muitas ruelas milenares da cidade, onde me sento a conversar com ele, sobre a vida, sobre a cidade. Prepara-me um dos seus lassis fresquinhos com leite das suas vacas que viviam no rés do chão da sua casa mas que agora habitam numa pequena propriedade que comprou perto da cidade. Aparece o seu filho, Nimish com o pequeno babu que ainda não tem nome por ter nascido à pouco tempo e que já tem a cara com pequenos borrões negros para afastar o mau olhado. Falamos, rimos, enquanto os peregrinos passam entre o templo dourado (o mais sagrado de Varanasi para os crentes) e o rio onde primeiro têm de se banhar antes de entrar no templo. Alguns tomam um lassi e conversam connosco, oriundos dos mais remotos cantos da Índia, outros passam e sorriem. 

Shiva entre nós

A vida flui por esta cidade e tudo está bem, a energia de Shiva, presente em cada canto, em cada shiva lingam, em cada templo e em cada pessoa, fazem com que ela permaneça igual, ano após ano, século após século, vida após vida. Cada um destrói a correria do tempo e vive-o na sua plenitude. Tudo está bem. Tudo flui.

Gopal a preparar um lassi





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