A cidade de Shiva, o deus da destruição, ou uma bonita metáfora para a necessidade de destruirmos o que há de mau ou antigo nas nossas vidas e assim dar espaço para o novo, para a criatividade e o fluir da vida no que há de vir.
Nesta cidade em que o sol nasce a este sobre uma praia vazia e se põe a oeste sobre a cidade, tudo tem a ver com contrastes e com dualidade: vida/morte; destruição/criação; material/imaterial, e por aí fora. É a cidade onde os shiva lingams, estátuas de deuses, árvores sagradas, o próprio rio são carregados de energia através dos rituais, poojas e aartis, que assim mantêm os seus poderes activos e disponíveis para todos sentirmos. A vibração das nossas células quando nos aproximamos ou entramos nestes locais debaixo da terra ou junto ao rio é algo maravilhosamente mágico e vivo. Os próprios gaths (escadarias que descem para um corpo de água) são locais por eleição para sentir esta energia da cidade. Paradoxalmente junto ao rio, tudo é calmo, tudo flui, dentro e fora de nós. Uma experiência de silêncio e imersão que a cidade possibilita e que nos prende a ela, tal é a maravilha e a viagem interior que realizamos. Tinha de ser assim.
Quando nos sentamos num dos dois burning ghats (crematórios) activos, que funcionam 24 horas e onde se queimam os corpos de quem assim faz a passagem, não deixamos de apreciar a beleza sensorial de tudo isto que se desenvolve à nossa frente. Os corpos são limpos e cobertos com uma pasta de madeiras e óleos perfumados e carregados envoltos em tecidos brancos ou avermelhados (homem ou mulher) sob o mantra “Ram Ram Satahé” (traduzido como através do deus Rama - avatar de Vishnu, o deus preservador na tríade Brahma, Vishnu, Shiva - entras no céu) por parte de quem os carrega. São mergulhados num primeiro banho purificador no rio e depois colocados na pilha funerária. Cobertos por mais madeiras perfumadas, como sândalo, e são cremados num processo que pode levar até 5 horas. Durante todo este processo o filho mais velho com os pêlos do corpo todos rapados e envolto numa túnica branca espera pacientemente que o processo termine. No meio do crematório, com cheiro de madeiras e carne queimadas, vacas comem os restos das flores que cobriam antes o corpo no momento do seu transporte. Alguns cães tentam puxar um osso ou pedaço que fique mais a jeito e prontamente são corridos pelos vigilantes do crematório ou familiares do defunto à paulada. Estes mesmos vigilantes do crematório peneiram as cinzas à procura de dentes ou anéis de ouro, que os familiares sabem que ao serem descobertos não serão a si entregues (aqui está uma das belezas do desapego, o que importa não são as posses ou o corpo em si do defunto, mas sim a fotografia de quem morreu, em casa, num altar em que todos os dias se fará uma pooja para celebrar e facilitar aquela pessoa). Alguém lava a roupa ou se banha mesmo ao lado do sítio onde as cinzas foram colocadas no rio enquanto os familiares observam os corpos a arder e bebem chá de limão ou chai vendido pelos vendedores ambulantes que por ali vão passando. Turistas tiram fotografias do rio, em barcos a remo ou a motor, e o rio flui, como desde sempre. Flui continuamente em direcção ao mar, levando e lavando tudo o que a nossa mente cria ou tenta prender-se a. Esta constância de tudo, desde o rio que flui, até aos rituais e vida ao longo dos séculos, traz-me certa tranquilidade que me relaxa e deixa num estado de transe e desapego. Em que tudo é irrelevante e coerente, pois tudo está no seu caminho e tudo está certo. É uma experiência religiosa, de religar, profunda com a espiritualidade que habita em mim.
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