sexta-feira, 1 de junho de 2018

O porto dos sentidos

Hoje acordei com saudades do ... Porto.

É verdade, lá passei a última semana a descansar, a passear e a trabalhar.  É como ir descobrindo uma cidade aos poucos, através dos sentidos e dos sentimentos que ela nos proporciona e partir em busca de viver intensamente tudo isso sem qualquer ideia do que esperar.

Adoro ir ao Porto e caminhar pelas ruelas da ribeira ou do bairro que vai até à Sé. Não sei os nomes de todas as zonas, simplesmente caminho, até à Foz ao longo do rio, vendo helicópteros e barcos sobre o rio com o oceano ao fundo; vendo colinas, que mais parecem escarpas pejadas de casas mais ou menos recuperadas. Vejo velhinhas na Sé à janela, crianças a jogar à bola nas ruas estreitas e mulheres a gritar das janelas ou quando passam que: "ò Joãozinho, tem cuidado que o carro cinzento é o meu", com sotaque claro. Sinto uma energia que é antiga mas ao mesmo tempo boa na cidade. Descer até à ponte D. Luís e ver a malta a saltar e também a pedir dinheiro aos turistas. Apreciar como estas tradições ou brincadeiras se vão ajustando aos tempos. Enfim é triste e é de salutar e todos querem o seu quinhão do tesouro. No entanto o Porto não é como Lisboa. No Porto a cidade ainda vai pertencendo aos Portuenses, sinto-o. Desde restaurantes cheios com gentes locais a comer, até casas ainda habitadas pelos mesmos em praticamente todo o lado. Sim pode estar a mudar há já algum tempo, mas muito menos que em Lisboa.

Talvez por ser uma cidade mais pequena que amaranhou pelas escarpas e colinas acima, e que se faz bem a pé de um lado para o outro eu me sinta bem ali. Talvez seja por passar apenas uns dias e não viver lá que a sua energia me afecta. Mas tudo parece tão fácil de descobrir, de viver e de sentir. Fiquei de certa forma apaixonado pelo Porto sempre que lá vou e que lá volto apetece ficar.


Fica ainda uma reflexão para a forma como as pessoas lá de cima falam cá de baixo, em termos espaciais, como se não conhecessem muito: "ouvi dizer que Sintra é lindo e que a entrada é o terror devido ao trânsito" ou "Lisboa é muito grande e podemos perder-nos a qualquer altura". Eu percebo que também não conhecemos muito sobre o Porto cá em baixo e fascina-me como apenas 300 e tal quilómetros são fruto de tal distanciamento, enfim ...


Muito mais haveria para dizer, muito mais sítios para apontar e para descobrir. Muito mais gente com quem falar e muito mais sotaque para sentir algo diferente. Lisboa está monótona, o Porto está a caminhar para lá, mas ainda tem rasgos de vida que me atraem e mantêm os sentidos alerta, despertos e vivos.

Hoje acordei com saudades de acordar no Porto, comer fruta e caminhar por ruas e ruelas, para cima e para baixo, falando com locais e turistas, descobrindo novos lugares onde ler, trabalhar e passar tempo a contemplar.






quarta-feira, 14 de março de 2018

Surya Namaskar 😀🙏

São 6 e pouco da manhã. 

Estou sentado no raja ghat. Atrás de mim um cão deitou-se todo enroscado. Aqui os cães gostam muito de se deitar ao pé dos humanos apesar dos muitos maus tratos a que muitas vezes são sujeitos!?

No ar espalha-se o som gentil, calmo da flauta que um homem mais velho toca. Passos de pessoas nas suas rotinas matinais ecoam à minha volta misturados com os motores dos barcos que sobem e descem o rio cheios de turistas e peregrinos. 

Homens e mulheres despem-se e banham-se entoando mantras ou conversando. Cães ladram de vez em quando e o bater da roupa nas pedras por parte dos lavandeiros segue ao ritmo das lavagens. A cidade já respira vida. Há uns minutos largos atrás só o cantar dos pássaros, ressonares alheios de quem dorme pelos ghats, mosquitos, cães e mais alguns madrugadores ocupavam o espaço.

Agora tudo se transformou. 

Sereno, ao fundo, num momento em que só a flauta se ouve no seu êxtase, ele ergue-se suavemente. Lindamente, o dia nasce com o despertar do sol e logo após esse majestoso momento tudo volta ao normal. 

O rio flui, a vida corre e nós com ela. 

Levanto-me e sigo o meu caminho. 

Bom dia :)




domingo, 11 de março de 2018

As mil e uma imagens de uma imagem.

Não há forma simples de sumarizar tudo mas destacam-se uma paz e calma interior ao observar o processo. Não pretendo desvendar-vos Varanasi ainda assim quero mostrá-la como a sinto, a uma das suas facetas.

Imaginem uma fotografia. Tem a moldura nos seus contornos e uma imagem no interior onde uma história se desenrola. Os contornos seriam a cidade própriamente dita, Varanasi ou Kashi, a cidade da luz, de Shiva (a consciência absoluta). A imagem que vos relato está centrada no ghat das cremações. O maior, pois há também o pequeno. Aqui centenas de corpos são queimados por dia. Carregados pelas ruas estreitas da cidade em mortalhas de bambu aos ombros de membros próximos ao defunto ou meros carregadores, descem até ao crematório junto ao rio. Ao longo do caminho cruzam-se com a vida diária da cidade e recebem banhos de flores e mantras que são lançados ou cantados pelos carregadores. No fundo estes  preparam a alma para a viagem final e respectiva libertação do seu veículo material.

Chegados ao rio, primeiro mergulha-se o corpo nas águas do Ganges para purificar pela água o corpo sujo pela vida e acções do seu utilizador. Depois seca um pouco e entre rituais, mantras e ser coberto de ghee e madeiras cheirosas, como o sândalo, é velado e acompanhado pelo filho mais velho do defunto nas suas vestes brancas e corpo rapado de quaisquer pelos ou cabelos. Retiram-se alguns tecidos mais preciosos por parte de quem mantém o crematório e que mais tarde serão trocadospor dinheiro. Afinal é apenas um bem material que a alma não necessita e servirá desta forma para atrair mais boas acções na jornada imaterial da alma prestes a libertar-se. Tudo é feito perante os olhos dos familiares que ali estão a acompanhar a viagem final. Tudo é claro e transparente e aceite por todos. Faz parte do círculo da vida afinal e a todos aguarda o mesmo destino e cenário se tudo correr bem. Ao redor alguns corpos ardem já, por vezes com alguns membros espetados para fora das piras. Braços ou pernas mas o mais comum são cabeças caídas que prontamente são devolvidas ao fogo libertador. Mais abaixo, no rio, entre algumas cinzas que já foram garimpadas no meio das piras para quem o fez recuperar dentes de ouro ou jóias que mais tarde troca por dinheiro, alguém se banha e lava a roupa e os dentes. Entre as piras ainda, vacas comem o resto das flores que caíram das mortalhas e cães tentam a sua sorte com ossos que consigam apanhar antes de serem prontamente corridos dali. Os familiares olham e acompanham tudo isto paciente e tranquilamente. Tudo está bem. Entre as piras que ardem e as que esperam o seu corpo, está uma terra castanha escura, preta e cinzenta de cinzas, bosta de vaca e pontos coloridos pelas flores que cairam das mortalhas.

É um local de felicidade e paz. É onde a alma atinge o moksha e se liberta dos ciclos de reencarnação por isso tudo está feliz ou em aceitação. Em casa, uma fotografia do defunto é colocada na parede ou no templo familiar e ali receberá mantras e poojas.

No ghat, turistas observam o ritual dos barcos ou dos degraus misturados com os familiares. O cheiro a carne queimada mistura-se com o da madeira queimada e incensos colocados para atenuar os dois primeiros. Ao redor do ghat barqueiros tentam vender passeios de barco, vendedores vendem chai e chá de limão, outros japmalas e mais artigos religiosos. É só mais um dia de trabalho.

Eu também ali estive a observar a naturalidade com que tudo isto se processa e não deixei de ser invadido por uma profunda paz e calma. Acho que todo o cenário convida a isso e a mistura de tantas coisas não deixa de ser incrível e esclarecedor de quão irrelevante são os apegos e forma como tratamos a morte no ocidente. Aqui tudo é cruamente simples e libertador. A dor existe, claro, mas é logo substituída pela felicidade e aceitação de um princípio, início de algo maior por parte de quem se finou e que todos celebram e vivem no meio da vida que, como o rio, continua a fluir ao seu ritmo e rotinas.



domingo, 18 de fevereiro de 2018

Índia, selvagem e crua.

Às vezes é-me difícil descrever a Índia. Estou agora a caminhar ao redor do complexo do taj mahal. No caminho já vi papagaios verdes a comer sementes no meio de esquilos enquanto duas vacas passavam a comer erva e um cão se espreguiçava ao sol, tudo sob o olhar atento de um kingfisher do alto de uma árvore. Que mais? Bem, muito mais. Cabras e porcos, pavões e corvos, bul bul e não sei quê preto. Pombos e macacos. Jainistas, budistas, cristãos, ortodoxos, muçulmanos, gurus, sanyasas, sadhus, rishis, babas, hindus, turistas e viajantes. De chai, chapati, panir, puris, gulab jamu, leite morno antes de dormir e ghee. De bam bam bolês, ram ram, jap malas, bengalas, chiloms, oms, oferendas e ezans. Paixões, amores e ódios fáceis tal são as convicções e crenças enraizadas. Pobreza e riqueza espiritual a par de extrema pobreza e miséria humanos
No entanto coloridos saris e turbantes, ouro e prata iluminam as ruas. Actores e actrizes de bollywood mas também no dia a dia. Tanta mas tanta diversidade. Caminho pelo meio da selva amazônica parece, tal é o ruído e cantar da floresta. No entanto estou na Índia e por isso esta floresta é feita dos animais, certo, árvores mil, flores com as mais variadas cores e cheiros, plantas e, claro, carradas de plástico. Perguntava-me à pouco se haveriam tantas vacas a passear antigamente, se os animais andavam assim tao livremente e em tanta quantidade como agora. Hum, que boa brisa chegou. Não devia ser assim nos tempos antigos. Apesar de uma maioria hindu os moghuls tinham punho de ferro e seguramente afastaram para o campo as maiorias hindus mantendo-as desinformadas e deseducadas. Talvez isso explique a Índia de hoje e do karma. Talvez não pois a índia é, e sempre foi, igual a si própria: selvagem e crua. Num bom sentido, aquele que nos trás a nós e leva a passar por uma kali ou shiva e pedir que nos destruam o excesso, o ego. Aquela Índia onde as crianças ainda correm semi-nuas a brincar e se misturam com os animais. Aquela Índia de feições e traços carregados, marcados pela vida dura e machismo. É uma Índia única e diversa. De sorrisos fáceis e descomprometidos ainda que às vezes chatos e desesperados. É a India da sobrevivência onde se luta e labuta. Tal como nós quando olhamos para dentro e contemplamos o ser até deixar ele ser. Sejamos selvagens, bons, mas selvagens.


segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Fluindo pela Índia

Viajar, ver o mundo como ele é, como podia ser ou como foi. Através da janela do autocarro ou do comboio vejo um desfile de vidas cruzadas e ligadas por uma realidade que as une. É sempre assim. O país onde estamos e que por vezes extravasa além das suas fronteiras, afeta sempre a vida das pessoas. Aqui na Índia não é diferente. Desde a mulher com o seu colorido sari ou lehenga e chutnri, até ao homem nas suas bem engomadas kurtas e pajamas tudo se tenta para sobressair ao que rodeia. Pó, sujidade, lixo, pobreza, miséria, às vezes uma procura pela dignidade humana surge e, curiosamente, verifica-se o mesmo para a dignidade dos outros animais, cães e vacas especialmente. Esse ser tão sagrado mas por vezes tão mal tratado. Tudo é contraste e carece de contexto. Um miúdo pobre a pedir comida depois de um dia entre o lixo a apanhar plastico para trocar por dinheiro é apenas um miúdo. Ainda que ganhe vícios e jeitos de adulto ainda mantém aquele sorriso infantil e inocente por algum tempo. As raparigas que fazem o mesmo têm uma tenacidade e inteligência assombrosas. É tudo uma questão de oportunidade mas o karma está aí e, nesta terra, ele é parte das vidas. Aceita-se o que vem, o que se tem e segue-se vivendo. Se as coisas vierem e forem acontecendo, bom, deixa-se fluir e vai-se com a água descendo o rio. Se as coisas não vêm e não forem acontecendo, bom na mesma, continua-se a fluir no mesmo rio. O fim é igual para todos, o mar. As margens variam com as correntes e chuvas mas o rio sempre flui para o mar. Por isso não amo nem odeio a Índia. Vivo-a e aceito-a no seu contexto. Adoro a Índia apesar de tudo isto porque tem coisas só daqui, que só aqui são possíveis. Um sorriso inesperado, um tique com a cabeça, um doce, comida vegetariana, um gayatri mantra, um ganesha, uns pezinhos de lakshmi, diversidade, honra, orgulho único, sorrisos, vida daquela vivida sem filtros, pureza e dignidade em tantas situações adversas. Já cá passei longas temporadas e não sei se cá conseguia viver mas sabe bem senti-la e como nos coloca no nosso lugar. Oh como nos coloca no nosso lugar. Atenção que não é bom nem mau este lugar. É somente quem somos e como somos. Cabendo a cada um lidar consigo, redescobrir-se, revisitar-se, transformar-se. Talvez por isso a Índia seja fértil em santos, gurus, rishis, iluminação. Agora sentado por mais 5 horas neste autocarro, velho, usado, desgastado, forte, venerável, fidedigno, sigo a olhar pela janela. Uma vaca a comer lixo, um miúdo a conduzir uma mota. Um cão coxo e uma mulher que caminha com um bonito sari amarelo. Um homem à minha frente lê o jornal em hindi. O Nyaesh dorme ao meu lado num lugar possível de escolher entre tantos outros mais confortáveis mas queria vir ao meu lado, disse-o com um sorriso humilde, satisfeito e cheio de honra, como se fosse partilhar uma grande aventura. Enfim, deixar fluir e sentir-nos neste rio do qual somos apenas uma gota é, em si, a grande aventura. Jai ganga jai.