segunda-feira, 14 de março de 2022

A pressa não mora aqui

Viajar é, desde há muito tempo, a forma predilecta de conectar com o desconhecido e com a realidade que está no destino ou destinos para onde nos deslocamos. Desde há muito tempo também, que as formas de viajar se vêm modificando e adaptando aos viajantes das épocas em que viajam. Se antigamente o conceito de slow travel era algo típico de uma viagem (fosse ela de negócios, militar, comercial, peregrinação, etc), hoje em dia é um conceito disponível apenas para uns poucos felizardos. 


Desde logo a sociedade e a forma como está organizada impele a que, em viagem, se faça um consumo voraz do tempo, distribuindo-o por um conjunto de sítios, monumentos, cidades, considerados de interesse, muitas vezes, por outros que não o próprio viajante. Assim, questiono-me sobre o que nos leva realmente a viajar? Será ainda um desejo de explorar o mundo pelos nossos sentidos ou tão somente o assimilar de experiências e contactos com realidades e locais, pessoas, que no nosso imaginário adquiriram a forma, o contexto, a dimensão projectada por tanta leitura, facebook, instagram e outros meios que nos estão disponíveis no quotidiano? É também engraçado notar que, mesmo que não sejam estas as fontes, há, e haverá sempre, uma qualquer fonte de onde bebemos uma ideia ou conceito sobre o que nos espera ou iremos encontrar sobre esse destino onde nos propomos ir. Na verdade a forma da informação chegar até nós apenas mudou, se antes eram as histórias à volta da fogueira, depois os relatos e mitos dos contadores espalhados por palácios, salões e tabernas, hoje são as redes sociais que a internet possibilita o veículo principal para propagar o que é ou deve ser uma viagem (os 6 cafés imperdíveis em; as 29 experiências inesquecíveis em; etc). Sinto até que a forma como as pessoas ouviam e interpretavam todas estas histórias e contos não mudou muito. Estarmos a ouvir um bardo a contar a história de um homem com corpo meio de cabra meio  de homem e três olhos a ajudar a construir um palácio para um rei generoso ou vermos alguém a pousar para uma foto junto de local icónico não terá mudado muito em termos da percepção que temos, o espanto e a curiosidade que sentimos. Hoje podemos efectivamente mostrar este ser descrito em cima, caso o encontremos, e se isso não acontecer temos sempre a pose fácil e o discurso de influencer construído. É aqui que, para mim, reside a questão de viajar. Podemos ver tudo nos social média deste mundo e procurar isso quando estamos no destino e ainda assim não ver nada. Por oposição, antigamente, à volta de uma fogueira podíamos imaginar e criar as realidades que um qualquer contador nos estimulava a ver, a criar. Ainda assim, não podemos sentir o que isso é. Podemos ver ou ouvir à distância estas histórias, relatos, imagens mas não podemos falar sobre elas até vê-las ao vivo. Tocá-las e senti-las a ganhar a dimensão que a presença nos devolve sobre o que está a ser dimensionado. 


A viagem é e sempre foi uma ferramenta para nos expor à contemplação interior. Ao encontro entre o que temos e é nosso (imposto ou aceite), a nossa cultura, valores e contexto, e ao que pertence ao outro. É neste encontro que podemos fazer pontes ou erguer barreiras. É neste encontro que podemos compreender o nosso sentir perante as emoções, os sentimentos e as necessidades que surgem e que temos de olhar para continuar a manifestar uma presença com a qualidade dela mesmo, presente, crítica, empática, viva. É por isso que considero que viajar devagar é fundamental: sem pressa; sem tentar apenas fazer as coisas ou ir até aos locais e ao encontro de pessoas que outros aconselham. Só podemos olhar para o que é nosso e para o que vem do encontro entre o que é nosso e o que é dos outros através dos sentidos, dos nossos sentidos. "O que é essencial é invisível aos olhos", já dizia o principezinho. Portanto viajar devagar, viajar com calma, viajar sem pressa é, cada vez mais, imprescindível. Seja para o contemplar demorado e necessário sobre o que é nosso, sobre as nossas fronteiras emocionais, sobre os nossos julgamentos e ideias do outro, do seu contexto da sua forma e realidade. Seja para perceber a natureza e o outro na sua plenitude, abrindo a nossa percepção ao que vem e como vem o estímulo que a viagem proporciona através das pessoas, dos momentos, dos locais e da natureza que vão desfilando perante o nosso plenário pessoal. Viajar é viver e potenciar a transformação. Perante os conflitos de hoje e as suas especificidades, desde Taiwan, passando pela Birmânia, Palestina, o mais recente da Ucrânia e não esquecendo os tantos conflitos que proliferam em África e as guerras políticas interesseiras na américa do sul. Todos estes conflitos desaguam ainda no clima e as suas manifestas alterações e são temperados a imposições de novas regras e restrições com o COVID. De tantas formas temos uma quantidade de perspectivas, de contemplações e acções ao nosso dispor para tomar o mundo como nosso, como dizia o Krishnamurti, e que apenas fazendo isso podemos assim ter a responsabilidade de cocriar o mundo em que queremos viver. Sem isto, sem esta contemplação primeiramente interior, sem depois a posterior análise emoção/razão, coração/cérebro, não podemos estar presentes e vivos no construir do mais sagrado que há para cada um, o seu caminho. 

A pressa não mora aqui e, portanto viajo, contemplo e aprendo, mudando onde tenho de mudar, largando o que não serve e trabalhando a qualidade desta presença minha em empatia e análise contínuas no caminho que é meu. Esta mudança de mindset tem-me ensinado muito e permite realmente ligar e conectar com qualquer destino, tentando potenciar e apoiar o que de positivo e benéfico se faz com as pessoas, natureza e negócios nestes sítios, longe ou perto, por onde estendo o meu contemplar.

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