quarta-feira, 7 de junho de 2023

Potencial e mudança de mindset

Hoje refletia com uma amiga sobre o que é isto do potencial e de como o vemos ou interpretamos à luz dos nossos interesses. Se dizemos a uma pessoa: "tens imenso potencial", quer dizer que reconhecemos nela capacidade para fazer mais e, provavelmente melhor, numa determinada área ou campo da vida. O potencial de uma árvore é, talvez e segundo a minha amiga, viver a sua vida plenamente desde que intocada pelos humanos. Nós é que podamos para estimular o seu crescimento e espalhamos os ramos e folhas à volta para regenerar solo. Mas do ponto de vista da natureza o potencial é inexistente. A natureza não se preocupa com o que aquela árvore pode ou não produzir ou tentar com que produza mais ou menos. Naturalmente a vida e, talvez em paralelo, a produção da árvore seguem o seu curso. 

O mesmo se aplica, talvez, ao que é visto como regenerativo. Será que afirmar que existe um consumo regenerativo faz sentido? A verdade é que penso que não, na medida em que se é regenerativo não pode assentar em algo que é consumido, explorado, que extraia valor, recursos de outros seres, terra incluída, que é o consumo (pelo menos como o vivemos). O que é consumido não volta mais. O que usamos tem de ser feito de forma a que o que é extraído, seja, de alguma forma, reposto ou criadas as condições para que se substitua naturalmente. Na agricultura regenerativa, poda-se para estimular o crescimento e criar biomassa que permita aos solos regenerarem-se. Tentamos acelerar o processo natural porque o nosso tempo é limitado e porque, apesar de tudo, precisamos de comer para viver. Se pudermos viver num planeta equilibrado, com ar limpo, plantar água e regenerar solos, melhor. A alternativa é o colapso dos sistemas que, aliás, se tem vindo a verificar um pouco por todo o mundo e que resulta na degradação das condições de vida na terra, com impacto directo nos seres humanos: a extinção.

Se calhar não a extinção de todos mas de muitos seguramente, entre os seres vivos que habitam este planeta. O mais incrível é que do ponto de vista do planeta, é indiferente se nos extinguimos agora ou amanhã, ele continua. Regenera-se, o que não deixa de ser uma curiosa ironia. Também importa, para mim, perceber que cooperação e cocriação são realidades que podem e devem existir cada vez mais ao invés de competição e separação. Esta filosofia de um e um são dois por oposição a um mais um são dois é muito interessante para se tentar caminhar para uma forma de estar mais assente naquilo que podemos trocar e partilhar rumo a esta regeneração.

Corações ... há muitos :)

Não me quero focar tanto na extinção, mas sim naquilo ao meu alcance e que pode ter impacto enquanto vivo, tanto na minha vida como nas vidas dos outros (animais, seres vivos, vida). O turismo , assente num pensamento regenerativo ao serviço da vida, pode ser uma ferramenta que auxilia este movimento a acontecer e cocriar a mudança de mindset necessária em nós para abraçar estas mudanças de forma local e global. Não é possível combater sozinhos as alterações climáticas! Não é possível mudar o mundo sozinhos, mas podemos ter comportamento e agir de forma a contribuir para isso e, juntos, sermos mais fortes.

Os cogumelos formam redes de comunicação impressionantes

Nos caminhos que tenho percorrido na vida, depara-se um que muitos desafios emocionais e profissionais me está a lançar: como tornar as minhas tours mais regenerativas.

Na prática como faço isto perguntam-me. Já me estendi sobre o assunto um pouco no artigo anterior e quero continuar a fazê-lo. Se alguém o sentir, por favor comuniquem-se para podermos desenvolver o potencial desta ideia de regenerar a mente, o corpo e a alma.

O que é regenerativo está em constante mudança mas o potencial que as pessoas têm, enquanto viajantes, enquanto visitados, está lá e podemos usá-lo. Se podemos optar por actividades, por formas de nos deslocar mais ao serviço do que acreditamos, mais ao serviço dessa vida que é maior que nós e que é transversal e atemporal, talvez seja mais interessante e verde a nossa pegada e a nossa própria forma de estar no mundo.

O turismo tem este condão de poder aproximar as pessoas, de mostrar as realidades e as opções disponíveis, de criar possibilidades que se transformam em potencial concretizado. Apesar de sermos natureza, temos esta opção de escolher o que queremos fazer e, conscientes do impacto disso, munidos de um mindset diferente podemos fazer diferente e podemos potenciar impactos positivos e que ajudam a cocriar uma realidade diferente.

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Bases do Turismo Regenerativo


Beeee yourself

Refletindo sobre uma pergunta que me fazem constantemente, “na prática o que é o turismo regenerativo?”, é importante começar por explicar o pensamento regenerativo que o sustenta.

Começo por relembrar que não há uma história única das coisas (como apresentado pela Chimamanda Ngozie), o que me leva a refletir sobre a necessidade de não haver uma história única de mim e do meu papel e impacto no mundo, na vida. Esta ideia aliada à procura de pontes para o que existe à minha volta, formam um pensamento que é cada vez mais uma filosofia de vida. Filosofia esta que me ajuda a questionar e refletir sobre quem sou, qual é o meu ritmo e como melhor posso viver em harmonia entre o que está vivo dentro de mim e esse mundo que me rodeia. Para isso, desenvolvo actividades e procuro experiências que me permitam estar em ligação comigo. Que façam a ligação entre a natureza interna e a externa. Ao agir assim, percebo claramente que não tenho de ser uma engrenagem de uma máquina que vem sendo constantemente melhorada ao longo de séculos com o sacrifício e exploração de recursos de forma nada sustentável ou regeneradora. 

Esta é uma mudança fundamental de mindset e esta mudança é fundamental porque permite olhar para a forma como vivo sob uma perspectiva global e ao serviço de um todo maior que eu: a vida. 

Procuro então formas de participar activamente na minha comunidade para encontrar soluções e ideias para responder a desafios locais que tenham impacto positivo na minha vida e na própria comunidade e natureza. Desde criar e participar em colectivos e cooperativas, até deslocar-me de forma mais sustentável, como a bicicleta ou transportes públicos, e ainda procurando consumir o que é local e da época. Estudar e criar conteúdos para falar e transmitir sobre pensamento e turismo regenerativo é outro campo a que me dedico. São tudo exemplos de estar ao serviço da minha forma de ver e viver o mundo, alinhados com um ritmo que é o meu e que começa no meu coração e depois irradia para fora. 

Monte Bromo, Java, Indonésia
Assim, ao olhar para o turismo, que é a minha paixão e fonte de rendimento principal, viajar de forma regenerativa, significa:

  • Imersão na cultura local: ao invés de visitar muitos lugares rapidamente, dedico mais tempo a cada destino para realmente conhecer as pessoas e a cultura local. Interajo e participo em actividades comunitárias com o intuito de ser habitante local por um dia.

  • Empoderamento comunitário e participação activa: procuro e apoio projectos e iniciativas que capacitem as comunidades locais. Participo em actividades e serviços turísticos que são liderados por pessoas da própria comunidade, garantindo que o turismo traz benefícios diretos para os habitantes locais.

  • Encerramento de ciclos: promovo a sustentabilidade e a regeneração através do contributo para o encerrar dos ciclos de recursos em vez do desperdício e exploração dos mesmos (como explicado no Story of Stuff). Isso pode incluir o uso de práticas de reciclagem, redução ou eliminação do desperdício; utilização de fontes de energia renovável e apoio a projetos de conservação ambiental; comer em restaurantes ou negócios familiares que produzem, confeccionam e dão uma utilização aos restos da alimentação não utilizados ou confeccionados para produção de composto, alimento de animais; etc.

  • Compras sustentáveis: procuro e adquiro produtos que sejam pensados e produzidos localmente. Opto por produtos artesanais, alimentos orgânicos e souvenirs que reflitam a identidade e cultura da região visitada. Desta forma apoio a economia local e incentivo práticas regenerativas. Verificar se os produtos consumidos são oriundos de marcas fair trade e fair label, por exemplo, é outra forma de consumir de forma consciente..

  • Deslocação consciente. Tento sempre viajar de formas o mais sustentáveis ou regeneradoras possíveis entre onde estou e o destino. Quando realizo actividades em viagem procuro as melhores formas de deslocar-me e aos grupos de modo a utilizar recursos e serviços já existentes que verifiquem a mesma filosofia regeneradora.

Repito que tudo o que faço em viagem, é o resultado da forma como vivo em casa e que  mudança de mindset foca-se num impacto positivo e na criação de condições para potenciar e capacitar futuros emergentes mais positivos tanto em casa como os destinos onde viajo (como colocado pela Sandra Matos). 
Estes são os princípios do pensamento regenerativo que, quando aplicados ao turismo, podem potenciar uma mudança e uma transição para o turismo como uma ferramenta (como apresentam a Anna Pollock e Michelle Holiday) em que os indivíduos, as comunidades e a natureza vivem em complementaridade e colaboração, contribuindo para um sistema mais resiliente e regenerador.

segunda-feira, 15 de maio de 2023

Regeneração, regeneração, é só regeneração ...

Cordilheira Branca | Cordilheira Negra - Peru
Ao longo destes últimos anos estudei e vivo o pensamento regenerativo. Mais do que uma solução, é uma forma de pensar e de viver. A regeneração é um passo mais neste caminho que pretende estar ao serviço da vida. 
Ao longo da minha vida tenho viajado e vivido um pouco pelo mundo. Desde sempre parti pelos trilhos do planeta para o conhecer, para o sentir, para o viver. A verdade é que descobri que só em presença posso realizar o que me propus. A presença que apenas o tempo permite. Quando damos tempo, quando a pressa não mora onde estamos. Só assim conseguimos dar o tempo para essa qualidade de presença sobressair e a conexão existir. Conexão com o que está vivo em nós, com o local que nos rodeia e as possibilidades de ligação a ele, através das pessoas, da natureza, dos objectos, de tudo. 
Cada vez sinto mais desconforto em apanhar um avião para cruzar meio mundo e aterrar com um grupo de pessoas lá na outra realidade distante e diferente. A verdade é que não é assim tão diferente, na medida em que quem está lá, são pessoas também. Temos essa ligação humana como algo comum. Choramos, rimos, ficamos doentes, recuperamos, da mesma maneira por exemplo. É certo que com diferentes “mães culturas” (Ismael, Daniel Quinn) a sussurrar diferentes soluções para a vida, mas com este potencial humano em comum.

Portanto, quando me penso como um ser ao serviço da vida, não posso deixar de olhar para mim, para a relação comigo. Para as decisões que tomo no que me afeta em relação ao que como, à forma como me desloco, aos serviços, actividades, coisas que adquiro ou proporciono, tanto em casa como em viagem. Somos o que comemos, somos o que fazemos, e somos o que pensamos. Por isso, na regeneração, há que olhar para nós como uma parte que pertence a um todo. Todo este que é maior que nós e que engloba a natureza, os outros, o nosso contexto, a vida no geral. Não podemos olhar para o mundo de forma isolada, nem de forma partida, quebrada, pois é uma malha onde todos somos importantes para o resultado final.
Focando no que é importante, a regeneração de cada um, a mudança de mindset rumo a um mundo mais ao serviço da vida e do que ela representa: possibilidades. Possibilidades de transformação, de crescimento, de comunidade e de aprendizagens. O turismo, ao viver-se com pensamento regenerativo, adquire esta possibilidade de ser uma ferramenta ao serviço da vida. De empoderar as comunidades e, por arrasto, os indivíduos que as compõem. De dar novo alento e significado ao pacto entre nós e a natureza, não como exploradores, mas sim como parte integrante dela. De alimentar o ser que habita em cada um, como um ser que se questiona, que se vive e prospera na sua relação consigo, com o outro, com o mundo, com a vida.
É que, o mundo não vai a lado nenhum, mas nós vamos, vamos rumo a uma extinção em massa se continuarmos neste rumo. 

Portanto vamos trabalhar para mais regeneração? 🌱

segunda-feira, 28 de março de 2022

Varanasi

Baba Raju

Varanasi, Banaras, Kashi. Tudo nomes duma cidade milenar que ecoa pelas memórias do tempo e da nossa civilização humana. Hoje é um local onde tanto se podem encontrar homens nus a espalhar bênçãos por entre os crentes ou corpos a ser cremados junto a um rio que tanto significado tem para os hindus, o Ganges. Descendo dos cabelos de Shiva e assim ligando o plano dos deuses com o plano material, este rio assume fundamental importância pois quem nele se banhar ou a ele as suas cinzas/corpos forem lançadas é automaticamente limpo dos seus pecados ou atinge o desapego da vida material, libertando-se do ciclo da reencarnação pois todo o seu karma é limpo. É este o motivo pelo qual milhões de indianos peregrinam a esta cidade desde os tempos mais imemoriais. 

roupa a secar depois de lavada

A cidade de Shiva, o deus da destruição, ou uma bonita metáfora para a necessidade de destruirmos o que há de mau ou antigo nas nossas vidas e assim dar espaço para o novo, para a criatividade e o fluir da vida no que há de vir.

Nesta cidade em que o sol nasce a este sobre uma praia vazia e se põe a oeste sobre a cidade, tudo tem a ver com contrastes e com dualidade: vida/morte; destruição/criação; material/imaterial, e por aí fora. É a cidade onde os shiva lingams, estátuas de deuses, árvores sagradas, o próprio rio são carregados de energia através dos rituais, poojas e aartis, que assim mantêm os seus poderes activos e disponíveis para todos sentirmos. A vibração das nossas células quando nos aproximamos ou entramos nestes locais debaixo da terra ou junto ao rio é algo maravilhosamente mágico e vivo. Os próprios gaths (escadarias que descem para um corpo de água) são locais por eleição para sentir esta energia da cidade. Paradoxalmente junto ao rio, tudo é calmo, tudo flui, dentro e fora de nós. Uma experiência de silêncio e imersão que a cidade possibilita e que nos prende a ela, tal é a maravilha e a viagem interior que realizamos. Tinha de ser assim.


Vestir o sari depois de se banhar no Ganges

Quando nos sentamos num dos dois burning ghats (crematórios) activos, que funcionam 24 horas e onde se queimam os corpos de quem assim faz a passagem, não deixamos de apreciar a beleza sensorial de tudo isto que se desenvolve à nossa frente. Os corpos são limpos e cobertos com uma pasta de madeiras e óleos perfumados  e carregados envoltos em tecidos brancos ou avermelhados (homem ou mulher) sob o mantra “Ram Ram Satahé” (traduzido como através do deus Rama - avatar de Vishnu, o deus preservador na tríade Brahma, Vishnu, Shiva - entras no céu) por parte de quem os carrega. São mergulhados num primeiro banho purificador no rio e depois colocados na pilha funerária. Cobertos por mais madeiras perfumadas, como sândalo, e são cremados num processo que pode levar até 5 horas. Durante todo este processo o filho mais velho com os pêlos do corpo todos rapados e envolto numa túnica branca espera pacientemente que o processo termine. No meio do crematório, com cheiro de madeiras e carne queimadas, vacas comem os restos das flores que cobriam antes o corpo no momento do seu transporte. Alguns cães tentam puxar um osso ou pedaço que fique mais a jeito e prontamente são corridos pelos vigilantes do crematório ou familiares do defunto à paulada. Estes mesmos vigilantes do crematório peneiram as cinzas à procura de dentes ou anéis de ouro, que os familiares sabem que ao serem descobertos não serão a si entregues (aqui está uma das belezas do desapego, o que importa não são as posses ou o corpo em si do defunto, mas sim a fotografia de quem morreu, em casa, num altar em que todos os dias se fará uma pooja para celebrar e facilitar aquela pessoa). Alguém lava a roupa ou se banha mesmo ao lado do sítio onde as cinzas foram colocadas no rio enquanto os familiares observam os corpos a arder e bebem chá de limão ou chai vendido pelos vendedores ambulantes que por ali vão passando. Turistas tiram fotografias do rio, em barcos a remo ou a motor, e o rio flui, como desde sempre. Flui continuamente em direcção ao mar, levando e lavando tudo o que a nossa mente cria ou tenta prender-se a. Esta constância de tudo, desde o rio que flui, até aos rituais e vida ao longo dos séculos, traz-me certa tranquilidade que me relaxa e deixa num estado de transe e desapego. Em que tudo é irrelevante e coerente, pois tudo está no seu caminho e tudo está certo. É uma experiência religiosa, de religar, profunda com a espiritualidade que habita em mim.

Purificações e purificado

Depois, levanto-me e, calmamente, caminho até à casa do Gopal, numa das muitas ruelas milenares da cidade, onde me sento a conversar com ele, sobre a vida, sobre a cidade. Prepara-me um dos seus lassis fresquinhos com leite das suas vacas que viviam no rés do chão da sua casa mas que agora habitam numa pequena propriedade que comprou perto da cidade. Aparece o seu filho, Nimish com o pequeno babu que ainda não tem nome por ter nascido à pouco tempo e que já tem a cara com pequenos borrões negros para afastar o mau olhado. Falamos, rimos, enquanto os peregrinos passam entre o templo dourado (o mais sagrado de Varanasi para os crentes) e o rio onde primeiro têm de se banhar antes de entrar no templo. Alguns tomam um lassi e conversam connosco, oriundos dos mais remotos cantos da Índia, outros passam e sorriem. 

Shiva entre nós

A vida flui por esta cidade e tudo está bem, a energia de Shiva, presente em cada canto, em cada shiva lingam, em cada templo e em cada pessoa, fazem com que ela permaneça igual, ano após ano, século após século, vida após vida. Cada um destrói a correria do tempo e vive-o na sua plenitude. Tudo está bem. Tudo flui.

Gopal a preparar um lassi





segunda-feira, 21 de março de 2022

Turismo Regenerativo

Nos últimos anos tenho investigado e debruçado sobre o turismo regenerativo. Mas o que é isto de turismo regenerativo? Na verdade é um conceito que começa a aparecer cada vez mais nos dias que correm e que tenta ir mais longe que o turismo sustentável. A ideia de que podemos ter um turismo sustentável e que se prese por um impacto neutro ou que permita o manter do status quo tem de ser levantada. Para isso aparece então este turismo regenerativo que parte do pressuposto que podemos ter um impacto positivo abrindo as portas a um legado benéfico para os futuros emergentes com base na mudança de paradigma.

Assim, pretende-se que cada um de nós realize acções mais conscientes e responsáveis que reflitam um estilo ou filosofia de vida de cada individuo que está mais em conexão consigo, que é mais conhecedor de quem é e dos seus ritmos. Este será o ponto de partida para tudo o que vem depois. Olhando para dentro e para quem somos, para os nossos pontos fortes e fracos, para o que nos faz brilhar e sorrir, encolher ou chorar. Quais as nossas vulnerabilidade e onde e quando nos sentimos expostos mas também quando estamos fortes. No fundo percebermos melhor quem somos ajuda a estabelecer a base para a relação que temos depois com os outros. Ajuda a empatia com quem está do outro lado e, seja animal humano, ou animal de outra espécie, seja do mundo vegetal ou de qualquer outro reino, ajuda a conexão de um ponto comum: todos somos parte deste meio integrante que nos sustenta, a natureza. 

Huaraz, Peru em 2012
Desta forma urge então perceber como podemos ajudar e contribuir com a nossa vida, com as nossas acções para preservar e impelir a natureza. Sem sermos deuses ou arrogantes ao ponto de pensar que a podemos controlar, mas aceitando que podemos ter um papel no seu equilíbrio do qual todos beneficiamos. Não estou a dizer que temos de abandonar a ciência e tudo o que ela e a nossa história nos tem proporcionado ao longo de milhares de anos, mas sim ajustar os nossos comportamentos como parte integrante deste todo e não acima de algo ou alguém como tem acontecido nos últimos séculos ou milénios de evolução contínua em cima dos recursos que estavam disponíveis e agora ou escasseiam ou deixam de existir, em cima de explorados e oprimidos, em cima de modelos económicos ao serviço de uns e não de todos, etc ao ponto da nossa própria sobrevivência estar em causa neste planeta.

Portanto o turismo regenerativo pode ter respostas e pode ter um papel fundamental a desempenhar na medida em que permite a cada individuo olhar para si, olhar para os que o rodeiam, olhar para as relações sociais e económicas com os que os rodeiam mas também com o ambiente. Permite ter uma visão global e integrada de todos os intervenientes neste tempo e espaço que cada um ocupa na passagem por esta terra que é única. Não há de facto planeta B para nós porque dependemos dele para sobreviver. Para o universo e para o planeta há muito mais que isso, há vida que continua depois de nós. Sem querermos ser arrogantes ao ponto de querermos declarar-nos os salvadores das outras espécies e do planeta, temos de pegar nas rédeas das nossas acções e declarar-nos responsáveis por elas e caminhar rumo à sua transformação, à sua regeneração em algo positivo, em algo que permita um futuro.

workshop de culinária para grupo com a Papa-Léguas em aldeia rural no Laos

Visitas com o Baba Raju em Varanasi com grupo da Papa-Léguas 
O turismo regenerativo pode não ter todas as soluções, pode não ter todas as respostas mas tem um caminho claro rumo a algo mais que a sustentabilidade: a mudança de paradigma. A mudança de mindset do vamos fazer o melhor possível para não destruir, para vamos fazer o tudo para melhorar o que está feito. Com a mudança de atitude não há mal que não se mude, dizia o Gabriel o pensador e penso que aceitando a responsabilidade e com coragem mergulharmos todos no que podemos fazer melhor e diferente, no ter tempo para relacionar connosco e com os outros, podemos descobrir um caminho diferente e cooperante entre todos, que inclua todos e que se sobreponha aos nacionalismos, aos especismos, aos superiorismos que cultivamos e alimentamos para sustentar regimes e sociedades cansadas e desgastadas por séculos de erosão e abusos políticos, sociais e humanos.

Alojamento local de uns amigos na ilha das Flores

Na prática é, por exemplo, estar além do ir consumir local ou focar no que é de um sítio. É procurar respostas que cá têm impacto no outro lado, fazer parcerias e redes de apoio entre organizações e pessoas com ideais semelhantes para dar estrutura e força aos movimentos emergentes que podem ajudar a transformar o que já existe. É assumir a mudança e querer fazer parte dela ao invés de apenas a mencionar ou apoiar esporadicamente. É ouvir e abrir à novidade sem a rejeitar e sujeitar ao politicamente correcto dos últimos séculos que é marcadamente sexista, racista, especista, consumista. É olhar para o todo e para o particular e encontrar as pontes para que ambos se retro-alimentem sem prejuízo e em cooperação ao invés de competição. É assumir um lugar na natureza que é parte integral dela e nem está nem acima nem abaixo, mas sim no seu todo e que permite interagir e viver em cooperação com ela.

Recomendo muito ler o livro Designing Regenerative Cultures do Daniel Christian Wahl (link aqui) e ouvir o podcast (link aqui) da Anna Pollock dedicado ao Turismo Regenerativo.

Tudo isto e muito mais será o turismo regenerativo mas sem o nosso contributo e vivência diária de uma filosofia regenerativa não nos leva a lado nenhum. Por isso o nosso planeta A é aqui, no presente e no viver e ser agora de forma consciente, desperta e responsável.



segunda-feira, 14 de março de 2022

A pressa não mora aqui

Viajar é, desde há muito tempo, a forma predilecta de conectar com o desconhecido e com a realidade que está no destino ou destinos para onde nos deslocamos. Desde há muito tempo também, que as formas de viajar se vêm modificando e adaptando aos viajantes das épocas em que viajam. Se antigamente o conceito de slow travel era algo típico de uma viagem (fosse ela de negócios, militar, comercial, peregrinação, etc), hoje em dia é um conceito disponível apenas para uns poucos felizardos. 


Desde logo a sociedade e a forma como está organizada impele a que, em viagem, se faça um consumo voraz do tempo, distribuindo-o por um conjunto de sítios, monumentos, cidades, considerados de interesse, muitas vezes, por outros que não o próprio viajante. Assim, questiono-me sobre o que nos leva realmente a viajar? Será ainda um desejo de explorar o mundo pelos nossos sentidos ou tão somente o assimilar de experiências e contactos com realidades e locais, pessoas, que no nosso imaginário adquiriram a forma, o contexto, a dimensão projectada por tanta leitura, facebook, instagram e outros meios que nos estão disponíveis no quotidiano? É também engraçado notar que, mesmo que não sejam estas as fontes, há, e haverá sempre, uma qualquer fonte de onde bebemos uma ideia ou conceito sobre o que nos espera ou iremos encontrar sobre esse destino onde nos propomos ir. Na verdade a forma da informação chegar até nós apenas mudou, se antes eram as histórias à volta da fogueira, depois os relatos e mitos dos contadores espalhados por palácios, salões e tabernas, hoje são as redes sociais que a internet possibilita o veículo principal para propagar o que é ou deve ser uma viagem (os 6 cafés imperdíveis em; as 29 experiências inesquecíveis em; etc). Sinto até que a forma como as pessoas ouviam e interpretavam todas estas histórias e contos não mudou muito. Estarmos a ouvir um bardo a contar a história de um homem com corpo meio de cabra meio  de homem e três olhos a ajudar a construir um palácio para um rei generoso ou vermos alguém a pousar para uma foto junto de local icónico não terá mudado muito em termos da percepção que temos, o espanto e a curiosidade que sentimos. Hoje podemos efectivamente mostrar este ser descrito em cima, caso o encontremos, e se isso não acontecer temos sempre a pose fácil e o discurso de influencer construído. É aqui que, para mim, reside a questão de viajar. Podemos ver tudo nos social média deste mundo e procurar isso quando estamos no destino e ainda assim não ver nada. Por oposição, antigamente, à volta de uma fogueira podíamos imaginar e criar as realidades que um qualquer contador nos estimulava a ver, a criar. Ainda assim, não podemos sentir o que isso é. Podemos ver ou ouvir à distância estas histórias, relatos, imagens mas não podemos falar sobre elas até vê-las ao vivo. Tocá-las e senti-las a ganhar a dimensão que a presença nos devolve sobre o que está a ser dimensionado. 


A viagem é e sempre foi uma ferramenta para nos expor à contemplação interior. Ao encontro entre o que temos e é nosso (imposto ou aceite), a nossa cultura, valores e contexto, e ao que pertence ao outro. É neste encontro que podemos fazer pontes ou erguer barreiras. É neste encontro que podemos compreender o nosso sentir perante as emoções, os sentimentos e as necessidades que surgem e que temos de olhar para continuar a manifestar uma presença com a qualidade dela mesmo, presente, crítica, empática, viva. É por isso que considero que viajar devagar é fundamental: sem pressa; sem tentar apenas fazer as coisas ou ir até aos locais e ao encontro de pessoas que outros aconselham. Só podemos olhar para o que é nosso e para o que vem do encontro entre o que é nosso e o que é dos outros através dos sentidos, dos nossos sentidos. "O que é essencial é invisível aos olhos", já dizia o principezinho. Portanto viajar devagar, viajar com calma, viajar sem pressa é, cada vez mais, imprescindível. Seja para o contemplar demorado e necessário sobre o que é nosso, sobre as nossas fronteiras emocionais, sobre os nossos julgamentos e ideias do outro, do seu contexto da sua forma e realidade. Seja para perceber a natureza e o outro na sua plenitude, abrindo a nossa percepção ao que vem e como vem o estímulo que a viagem proporciona através das pessoas, dos momentos, dos locais e da natureza que vão desfilando perante o nosso plenário pessoal. Viajar é viver e potenciar a transformação. Perante os conflitos de hoje e as suas especificidades, desde Taiwan, passando pela Birmânia, Palestina, o mais recente da Ucrânia e não esquecendo os tantos conflitos que proliferam em África e as guerras políticas interesseiras na américa do sul. Todos estes conflitos desaguam ainda no clima e as suas manifestas alterações e são temperados a imposições de novas regras e restrições com o COVID. De tantas formas temos uma quantidade de perspectivas, de contemplações e acções ao nosso dispor para tomar o mundo como nosso, como dizia o Krishnamurti, e que apenas fazendo isso podemos assim ter a responsabilidade de cocriar o mundo em que queremos viver. Sem isto, sem esta contemplação primeiramente interior, sem depois a posterior análise emoção/razão, coração/cérebro, não podemos estar presentes e vivos no construir do mais sagrado que há para cada um, o seu caminho. 

A pressa não mora aqui e, portanto viajo, contemplo e aprendo, mudando onde tenho de mudar, largando o que não serve e trabalhando a qualidade desta presença minha em empatia e análise contínuas no caminho que é meu. Esta mudança de mindset tem-me ensinado muito e permite realmente ligar e conectar com qualquer destino, tentando potenciar e apoiar o que de positivo e benéfico se faz com as pessoas, natureza e negócios nestes sítios, longe ou perto, por onde estendo o meu contemplar.

sexta-feira, 11 de março de 2022

Um olhar para o futuro desde o passado

Como alguns saberão, outros nem tanto, em 2011 e 2012 realizei uma viagem que me levou a dar a volta ao mundo e que está espelhada ao longo do início deste blogue. O meu mundo conhecido e o desconhecido. O mundo exterior, da física e da matéria e o interior, aquele da metafísica e da espiritualidade. 

Foram muitos os sentimentos que senti e as necessidades que vi surgirem. Sentimento de tristeza por ir partir e não ver os meus familiares, amigos e pessoas que me são muito queridas por algum tempo. Felicidade por partir e realizar um sonho que há tanto me acordava em noites de insónias. Incerteza pelo que iria encontrar e porque aventuras me esperavam, até se iria conseguir completar o que me propunha fazer: viajar à volta do mundo. Curiosamente o medo estava presente mas era algo que me dava algum conforto pois eu sentia que me deixava alerta. Enfim, com os sentimentos percebi a necessidade de ter um meio de comunicar para casa de forma mais regular e também de acalmar (sim, não imaginam como estava a minha mãe com o facto de eu ir embora um ano e picos pelo mundo fora) quem ficava. Em 2011 as telecomunicações não estavam ainda tão desenvolvidas como hoje e o mundo dos smartphones estava muito no começo. Talvez o exemplo melhor fosse o velhinho blackberry que é um remoto parente dos mais recentes iphones ou outros. Levei comigo um nokia 3310, resistente e compacto para o que podia ser uma viagem com momentos mais duros e menos confortáveis. Tendo tudo isto em mente pareceu-me que o blogue, na época, sem intagram ou um facebook ainda verde, seria o melhor formato. Criei o Trechos do Mundo, nesta plataforma. Trechos pois era isso mesmo que pretendia mostrar ou partilhar, o mundo através dos trechos que me iam aparecendo e que eu ia presenciando, vivendo.

Quero partilhar aqui a lista de países que pensei visitar e que coloquei no blogue

Então a lista de países pensada é:

  • França
  • Croácia
  • Bósnia
  • Sérvia
  • Bulgária
  • Turquia
  • Irão
  • Emirados Árabes Unidos
  • Omã
  • India
  • Nepal
  • Tibete
  • China
  • Vietnam
  • Camboja
  • Laos
  • Tailândia
  • Malásia
  • Indonésia
  • Nova Zelândia
  • Chile
  • Argentina
  • Paraguai
  • Bolívia
  • Peru
  • Brasil (Amazónia)

Hoje olho para esta lista e vejo ambição mas também um pouco de irrealidade. Tinha pensado numa viagem de um ano e se fosse viajar ao meu ritmo, muito devagarinho portanto, jamais num ano completaria esta viagem. Por outro lado vejo países que sempre me chamaram atenção e que ainda não visitei. Um dia talvez. Mas lá irei com calma. Estou a escrever este texto porque, tal como esta lista, a vida tem-me levado por caminhos que às vezes não são os esperados ou os pretendidos mas sim os que nos são apresentados. Não tenho a Colômbia na lista e no entanto acabou por ser o último país que visitei antes de regressar à Europa e depois a casa. E que tempo incrível lá passei e que saudades tenho da Colômbia.  Portanto às vezes há que aceitar as surpresas ou o rumo e fluir com ele. Talvez isto seja uma perspetiva bonita e até exclusiva de quem viaja com tempo, de quem vive com tempo. 

Chego onde queria. Vivemos num tempo estranho. Não pelo Covid, mas porque temos tempo para refletir e para mudar comportamentos. No entanto não o fazemos. Passados 11 anos desde a minha viagem, continuo a ver as pessoas a viajar apenas e só as suas duas semanas porque têm toda uma vida preenchida com o trabalho, com o cuidar de outros e, felizmente, algumas vezes com o cuidar de si. Talvez seja um sonhador e até um individuo que viva em utopias, mas anseio pelo dia em que mais pessoas possam fazer listas de países e lançar-se pelo mundo fora de encontro a essas aventuras e encontros que só o mundo sabe proporcionar. Talvez a viagem seja lançar-se na construção da casa que sempre quis fazer com as mãos, ou aprender a tocar bateria. Depois desta pandemia passar ainda não voltei a viajar fora da Europa e apenas os relatos que vou recebendo de alguns amigos que o fizeram me deixam sedento de ir lá a esses orientes e ocidentes distantes revisitar amigos, conhecer novas amizades e explorar-me em geografias e momentos à espera de ser revelados. Até lá fico, por onde estou e a seguir este novo rumo que a vida, com todo este tempo que generosamente, me deu. É também uma viagem construir lar. Solidificar amizades e relações. Sentir o ser dentro deste coração que bate em mim e a invasão de felicidade que sinto nestes dias e que aqui partilho convosco.

Tantos andarilhos tem a história e tantos tão desconhecidos. Tantos iluminados tem a história e tantos tão desconhecidos. A viagem mais para dentro é sem dúvida a viagem mais para fora, leva-nos aos limites do nosso universo. Atravessa as ruas da amargura e da felicidade. Por vezes retém-se no largo do êxtase; ou então perde-se nos becos da tristeza. Tanta gente, tanto julgamento. Tanto pensar e sentir. Tanto... Mas onde está o silêncio que nos deixa contemplar e parar. Que nos deixa viver e andarilhar

Espero estas semanas ter um terreno e começar a construir uma casa em madeira. Espero esta semana continuar a delinear o projecto que quero realizar com turismo regenerativo. Espero conseguir criar as condições para me dedicar a escrever mais textos, a amar a vida e as pessoas que a compõem e silenciar para contemplar o que a natureza tem para mim.