Não há forma simples de sumarizar tudo mas destacam-se uma paz e calma interior ao observar o processo. Não pretendo desvendar-vos Varanasi ainda assim quero mostrá-la como a sinto, a uma das suas facetas.
Imaginem uma fotografia. Tem a moldura nos seus contornos e uma imagem no interior onde uma história se desenrola. Os contornos seriam a cidade própriamente dita, Varanasi ou Kashi, a cidade da luz, de Shiva (a consciência absoluta). A imagem que vos relato está centrada no ghat das cremações. O maior, pois há também o pequeno. Aqui centenas de corpos são queimados por dia. Carregados pelas ruas estreitas da cidade em mortalhas de bambu aos ombros de membros próximos ao defunto ou meros carregadores, descem até ao crematório junto ao rio. Ao longo do caminho cruzam-se com a vida diária da cidade e recebem banhos de flores e mantras que são lançados ou cantados pelos carregadores. No fundo estes preparam a alma para a viagem final e respectiva libertação do seu veículo material.
Chegados ao rio, primeiro mergulha-se o corpo nas águas do Ganges para purificar pela água o corpo sujo pela vida e acções do seu utilizador. Depois seca um pouco e entre rituais, mantras e ser coberto de ghee e madeiras cheirosas, como o sândalo, é velado e acompanhado pelo filho mais velho do defunto nas suas vestes brancas e corpo rapado de quaisquer pelos ou cabelos. Retiram-se alguns tecidos mais preciosos por parte de quem mantém o crematório e que mais tarde serão trocadospor dinheiro. Afinal é apenas um bem material que a alma não necessita e servirá desta forma para atrair mais boas acções na jornada imaterial da alma prestes a libertar-se. Tudo é feito perante os olhos dos familiares que ali estão a acompanhar a viagem final. Tudo é claro e transparente e aceite por todos. Faz parte do círculo da vida afinal e a todos aguarda o mesmo destino e cenário se tudo correr bem. Ao redor alguns corpos ardem já, por vezes com alguns membros espetados para fora das piras. Braços ou pernas mas o mais comum são cabeças caídas que prontamente são devolvidas ao fogo libertador. Mais abaixo, no rio, entre algumas cinzas que já foram garimpadas no meio das piras para quem o fez recuperar dentes de ouro ou jóias que mais tarde troca por dinheiro, alguém se banha e lava a roupa e os dentes. Entre as piras ainda, vacas comem o resto das flores que caíram das mortalhas e cães tentam a sua sorte com ossos que consigam apanhar antes de serem prontamente corridos dali. Os familiares olham e acompanham tudo isto paciente e tranquilamente. Tudo está bem. Entre as piras que ardem e as que esperam o seu corpo, está uma terra castanha escura, preta e cinzenta de cinzas, bosta de vaca e pontos coloridos pelas flores que cairam das mortalhas.
É um local de felicidade e paz. É onde a alma atinge o moksha e se liberta dos ciclos de reencarnação por isso tudo está feliz ou em aceitação. Em casa, uma fotografia do defunto é colocada na parede ou no templo familiar e ali receberá mantras e poojas.
No ghat, turistas observam o ritual dos barcos ou dos degraus misturados com os familiares. O cheiro a carne queimada mistura-se com o da madeira queimada e incensos colocados para atenuar os dois primeiros. Ao redor do ghat barqueiros tentam vender passeios de barco, vendedores vendem chai e chá de limão, outros japmalas e mais artigos religiosos. É só mais um dia de trabalho.
Eu também ali estive a observar a naturalidade com que tudo isto se processa e não deixei de ser invadido por uma profunda paz e calma. Acho que todo o cenário convida a isso e a mistura de tantas coisas não deixa de ser incrível e esclarecedor de quão irrelevante são os apegos e forma como tratamos a morte no ocidente. Aqui tudo é cruamente simples e libertador. A dor existe, claro, mas é logo substituída pela felicidade e aceitação de um princípio, início de algo maior por parte de quem se finou e que todos celebram e vivem no meio da vida que, como o rio, continua a fluir ao seu ritmo e rotinas.
Imaginem uma fotografia. Tem a moldura nos seus contornos e uma imagem no interior onde uma história se desenrola. Os contornos seriam a cidade própriamente dita, Varanasi ou Kashi, a cidade da luz, de Shiva (a consciência absoluta). A imagem que vos relato está centrada no ghat das cremações. O maior, pois há também o pequeno. Aqui centenas de corpos são queimados por dia. Carregados pelas ruas estreitas da cidade em mortalhas de bambu aos ombros de membros próximos ao defunto ou meros carregadores, descem até ao crematório junto ao rio. Ao longo do caminho cruzam-se com a vida diária da cidade e recebem banhos de flores e mantras que são lançados ou cantados pelos carregadores. No fundo estes preparam a alma para a viagem final e respectiva libertação do seu veículo material.
Chegados ao rio, primeiro mergulha-se o corpo nas águas do Ganges para purificar pela água o corpo sujo pela vida e acções do seu utilizador. Depois seca um pouco e entre rituais, mantras e ser coberto de ghee e madeiras cheirosas, como o sândalo, é velado e acompanhado pelo filho mais velho do defunto nas suas vestes brancas e corpo rapado de quaisquer pelos ou cabelos. Retiram-se alguns tecidos mais preciosos por parte de quem mantém o crematório e que mais tarde serão trocadospor dinheiro. Afinal é apenas um bem material que a alma não necessita e servirá desta forma para atrair mais boas acções na jornada imaterial da alma prestes a libertar-se. Tudo é feito perante os olhos dos familiares que ali estão a acompanhar a viagem final. Tudo é claro e transparente e aceite por todos. Faz parte do círculo da vida afinal e a todos aguarda o mesmo destino e cenário se tudo correr bem. Ao redor alguns corpos ardem já, por vezes com alguns membros espetados para fora das piras. Braços ou pernas mas o mais comum são cabeças caídas que prontamente são devolvidas ao fogo libertador. Mais abaixo, no rio, entre algumas cinzas que já foram garimpadas no meio das piras para quem o fez recuperar dentes de ouro ou jóias que mais tarde troca por dinheiro, alguém se banha e lava a roupa e os dentes. Entre as piras ainda, vacas comem o resto das flores que caíram das mortalhas e cães tentam a sua sorte com ossos que consigam apanhar antes de serem prontamente corridos dali. Os familiares olham e acompanham tudo isto paciente e tranquilamente. Tudo está bem. Entre as piras que ardem e as que esperam o seu corpo, está uma terra castanha escura, preta e cinzenta de cinzas, bosta de vaca e pontos coloridos pelas flores que cairam das mortalhas.
É um local de felicidade e paz. É onde a alma atinge o moksha e se liberta dos ciclos de reencarnação por isso tudo está feliz ou em aceitação. Em casa, uma fotografia do defunto é colocada na parede ou no templo familiar e ali receberá mantras e poojas.
No ghat, turistas observam o ritual dos barcos ou dos degraus misturados com os familiares. O cheiro a carne queimada mistura-se com o da madeira queimada e incensos colocados para atenuar os dois primeiros. Ao redor do ghat barqueiros tentam vender passeios de barco, vendedores vendem chai e chá de limão, outros japmalas e mais artigos religiosos. É só mais um dia de trabalho.
Eu também ali estive a observar a naturalidade com que tudo isto se processa e não deixei de ser invadido por uma profunda paz e calma. Acho que todo o cenário convida a isso e a mistura de tantas coisas não deixa de ser incrível e esclarecedor de quão irrelevante são os apegos e forma como tratamos a morte no ocidente. Aqui tudo é cruamente simples e libertador. A dor existe, claro, mas é logo substituída pela felicidade e aceitação de um princípio, início de algo maior por parte de quem se finou e que todos celebram e vivem no meio da vida que, como o rio, continua a fluir ao seu ritmo e rotinas.
Fantástica descrição. É a alma que fala.
ResponderEliminarObrigado Manuel :) é deveras algo sobrenatural o que aqui de vive :) abraço :)
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