segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Fluindo pela Índia

Viajar, ver o mundo como ele é, como podia ser ou como foi. Através da janela do autocarro ou do comboio vejo um desfile de vidas cruzadas e ligadas por uma realidade que as une. É sempre assim. O país onde estamos e que por vezes extravasa além das suas fronteiras, afeta sempre a vida das pessoas. Aqui na Índia não é diferente. Desde a mulher com o seu colorido sari ou lehenga e chutnri, até ao homem nas suas bem engomadas kurtas e pajamas tudo se tenta para sobressair ao que rodeia. Pó, sujidade, lixo, pobreza, miséria, às vezes uma procura pela dignidade humana surge e, curiosamente, verifica-se o mesmo para a dignidade dos outros animais, cães e vacas especialmente. Esse ser tão sagrado mas por vezes tão mal tratado. Tudo é contraste e carece de contexto. Um miúdo pobre a pedir comida depois de um dia entre o lixo a apanhar plastico para trocar por dinheiro é apenas um miúdo. Ainda que ganhe vícios e jeitos de adulto ainda mantém aquele sorriso infantil e inocente por algum tempo. As raparigas que fazem o mesmo têm uma tenacidade e inteligência assombrosas. É tudo uma questão de oportunidade mas o karma está aí e, nesta terra, ele é parte das vidas. Aceita-se o que vem, o que se tem e segue-se vivendo. Se as coisas vierem e forem acontecendo, bom, deixa-se fluir e vai-se com a água descendo o rio. Se as coisas não vêm e não forem acontecendo, bom na mesma, continua-se a fluir no mesmo rio. O fim é igual para todos, o mar. As margens variam com as correntes e chuvas mas o rio sempre flui para o mar. Por isso não amo nem odeio a Índia. Vivo-a e aceito-a no seu contexto. Adoro a Índia apesar de tudo isto porque tem coisas só daqui, que só aqui são possíveis. Um sorriso inesperado, um tique com a cabeça, um doce, comida vegetariana, um gayatri mantra, um ganesha, uns pezinhos de lakshmi, diversidade, honra, orgulho único, sorrisos, vida daquela vivida sem filtros, pureza e dignidade em tantas situações adversas. Já cá passei longas temporadas e não sei se cá conseguia viver mas sabe bem senti-la e como nos coloca no nosso lugar. Oh como nos coloca no nosso lugar. Atenção que não é bom nem mau este lugar. É somente quem somos e como somos. Cabendo a cada um lidar consigo, redescobrir-se, revisitar-se, transformar-se. Talvez por isso a Índia seja fértil em santos, gurus, rishis, iluminação. Agora sentado por mais 5 horas neste autocarro, velho, usado, desgastado, forte, venerável, fidedigno, sigo a olhar pela janela. Uma vaca a comer lixo, um miúdo a conduzir uma mota. Um cão coxo e uma mulher que caminha com um bonito sari amarelo. Um homem à minha frente lê o jornal em hindi. O Nyaesh dorme ao meu lado num lugar possível de escolher entre tantos outros mais confortáveis mas queria vir ao meu lado, disse-o com um sorriso humilde, satisfeito e cheio de honra, como se fosse partilhar uma grande aventura. Enfim, deixar fluir e sentir-nos neste rio do qual somos apenas uma gota é, em si, a grande aventura. Jai ganga jai.





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